quinta-feira, 7 de outubro de 2010

'Dentro de mim'



Apercebi-me de que roubo isqueiros,

por culpa do meu subconsciente.

Subconsciente semi-cleptomaníaco,

aproveitador de diálogos com fumo.

Sou 600 anos mais nova que D. Duarte.

Quando está sol procuro a sombra,

e, quando não está, procuro o sol.

Odeio pessoas,

excepto um punhado delas.

E, acima de tudo,

não quero estar só

nem mal acompanhada.

Nem uma nem outra me serve.

Pois, quando mal acompanhada,

sinto-me só,

e, quando só,

sinto-me mal acompanhada.

Se me encontro rodeada

de esferas que nada valem por serem vazias,

quero apenas que me deixem.

Quando assim estou,

vejo-me fechada numa esfera individual

que nada vale por estar tão cheia.

E eu estou cheia.

Estou a rebentar,

a explodir,

a rasgar pelas costuras,

a sangrar por feridas já fechadas,

e a chorar lágrimas que já não tenho,

que já estão gastas,

que já estão secas.

Secas.

E eu tão cansada.

Estou tão cansada,

estou tão cansada de mim,

por favor, tirem-me de mim,

arranquem-me,

puxem-me,

empurrem-me de mim,

que eu estou farta,

que eu não consigo mais

estar fechada nesta fachada.

Ignorem a saudade,

e as feridas,

e a dor, e os fantasmas.

Esquartejem o meu carácter,

que se dane o meu carácter!,

e façam o que bem entenderem com

aquilo que me define.

Que eu estou farta.

Estou farta,

e não me quero mais.

Desencarcerem-me de mim.

O corpo que fique.







Ilustração de Bruno Clemente e texto de Leonor Figueiredo

quarta-feira, 16 de junho de 2010

'Agulhas'



Tenho agulhas no corpo.

Agulhas que, com perícia de mestre,
ao longo do tempo me foram espetadas,
em pontos milimetricamente escolhidos…

E elas estão lá.

Às vezes penso em arrancá-las à dentada…
às vezes desejo que elas nunca tivessem entrado em mim…
Mas elas estão sempre cá… nos braços, nas pernas, nos olhos…

…e há algo em mim que me impede já de as sentir.

Mas elas estão sempre… constantemente… irremediavelmente…






…aqui.









Ilustração de Bruno Clemente e texto de Leonor Figueiredo

segunda-feira, 24 de maio de 2010

E a dor de sonhar



A minha existência faz-se de sonhos,
Pedaços de tempo em que a minha vida é outra
E em que tudo em mim são delírios.
Antigamente, quando acordava
tudo à minha volta resvalava pelo tédio mais esgotante,
a realidade mais entediante,
a vida mais real.
Até que descobri que a vida também podia saber a sonho
sem ter de me empurrar para o outro lado,
o da irrealidade na realidade.
Mas esse sabor não era suficiente,
Eu tinha de o sentir na pele,
Tinha de sentir o seu cheiro genuíno,
E não uma imitação rasca de vida disfarçada.
Entrar nessa existência paralela,
largar tudo e agarrar outro tanto,
viver o sonho como se nada para além disso existisse.
E no meio de febres, de delírios,
de imagens, de cheiros,
de fantasia,
de toque…
… de felicidades fugazes…
eu esqueci-me.
Esqueci-me da vida,
Do que havia do lado de fora da caixa,
esqueci-me do que me chamava desesperadamente.
É que essa parede era de vidro,
Transparente, translúcida,
E eu tornei-a de ferro.
E agora,
Em vez de sair de sonhos para entrar na realidade,
Saio de sonhos para entrar em pesadelos.






Ilustração de Bruno Clemente e texto de Leonor Figueiredo

sábado, 6 de março de 2010

Sonhos



Somos os olhos do céu, de onde vemos montes, rios e planícies. Pessoas, cada uma percorrendo o seu destino, ligadas. Às vezes o tempo muda e em vez de tons amarelos, agora são vermelhos, logo serão cinzentos.
Podemos ir para onde queremos só com o pensamento, por todo o mundo enquanto um sonho existir.
Onde podemos sentir tudo o que há para sentir!
Adormecer,
É apenas uma janela que se abre
para lugares
que vemos a partir do céu,
É nosso.
Mas gostamos de oferece-los.
Os sonhos devem ser partilhados...
Como um abraço.


Fotografia de Leonor Figueiredo e texto de Bruno Clemente

(Parabéns ao Bruno, que faz hoje anos *)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Mundos




Lembro-me que as minhas palavras eram o teu pensamento,
como se eu tivesse o poder de te escrever
sem que sequer me falasses.
Quando as minhas linhas eram outro mundo
e as minhas palavras eram tudo o que eu quisesse que fossem.
Podiam não ser alinhadas,
medidas ou bem escolhidas,
mas eram as minhas palavras,
os meus sonhos,
os meus recantos,
e eu era tanta gente...
Esta noite,
após tantas e tantas,
olhei para mim e soube
que as minhas palavras já não são aquilo que eu quero que sejam,
são um retrato triste e inconsciente
daquilo que eu e a minha realidade somos.
As linhas... são só linhas.
O meu sorriso já não são flores
nem o meu peito borboletas.
O meu caderno deixou de ser aquele livro de contos
e é agora um diário de pútrida realidade.
Não quero continuar a fugir para as minhas palavras,
não quero que elas me puxem de dentro de mim.
Desaparece,
larga a minha consciência,
sai da minha saudade,
mas deixa-me escrever,
desenhar novos velhos mundos
e voar até onde eu quiser.
Porque a minha realidade precisa de imaginação,
e a minha imaginação precisa de mim.







Ilustração de Bruno Clemente e texto de Leonor Figueiredo